Milhões de festas ao luar
Que eu não vou ir, não quero ir".
Vinícius de Moraes
Inicialmente é necessário estabelecer que até agora não pensara realmente em escrever este artigo. A materialização do mesmo deve-se ao acaso. Viajando por um site de língua portuguesa do professor Cláudio Moreno à procura de opiniões acerca do uso de “ter de” e “ter que” e das hipóteses que giravam em torno desta questão para tentar gerar debate, li o comentário que havia sobre “vou ir” e decidi mudar o rumo. É que fiquei atônito quando percebi que a dificuldade com esta locução verbal não era apenas nossa. Até então pensava que esta ocorrência acontecia com os falantes de espanhol principalmente, visto que tal construção revela-se cotidianamente na perífrase “voy a ir”, e que ao falarmos em português, tornava-se difícil a não enunciação da mesma. Mas ao que parece, no português também ocorre, mas há divergência quanto ao uso. Para clarificar e sustentar o que aqui comento, decidi reunir algumas opiniões atuais sobre o assunto em questão.
Vejamos os exemplos abaixo*:
"Caro Professor Moreno: a minha dúvida é quanto ao uso da expressão "vou ir". O senhor escreveu, em uma resposta a outro internauta, que esta tal forma (é uma locução verbal?) seria condenada por gramáticos tradicionais. Gostaria de compreender melhor a razão para tal condenação. Há quem tenha tentado dar uma explicação dizendo que não se pode usar o mesmo verbo como verbo auxiliar e verbo principal. Contudo, sempre achei que a locução "tenho tido", por exemplo, não ferisse as regras da gramática. Obrigada."
Andréa
Resposta
Minha cara Andréia: tens toda a razão: há vários exemplos de locução verbal, em nossa língua, em que aparece o mesmo verbo, tanto na posição de auxiliar quanto na de principal; os mesmos fariseus que condenam "vou ir" aceitam "há de haver", "vinha vindo", "tinha tido". É evidente que o verbo só tem o seu significado pleno, originário, quando está na posição de principal; em "há de haver uma solução para este problema", o auxiliar (há) exprime a idéia de "desejo" (leia-se: eu gostaria que houvesse) ou de "obrigatoriedade" (leia-se: deve haver), enquanto o principal é que tem o sentido usual de "existir". Já falei sobre isso quando analisei a locução vinha vindo.
2. Consulta
"Prezado Prof. Moreno, estou com uma dúvida: afinal de contas, a expressão "vou ir" - muito utilizada no Rio Grande do Sul - está correta ou não? Eu penso que não; ele acha que sim. Podemos dizer "vou fazer", "vou trabalhar", etc., dando idéia de futuro, mas "vou ir"?? Obrigado e novamente parabéns pelo trabalho!
Rodrigo
Resposta
No caso de "vou ir", Rodrigo, vem agregar-se um outro fato lingüístico muito importante: a forma preferida de expressar o futuro, no Português moderno, é uma locução verbal com a estrutura ["ir" no pres. do indicativo + qualquer verbo no infinitivo]. Essa estrutura (vou sair, vou poder, vou ficar, vou ser) concorre com outras possibilidades, também usadas, mas em menor escala: (1) o próprio presente do indicativo ("Amanhã eu posso", "No ano que vem eu saio"); (2) o futuro do presente (sairei, poderei, ficarei, serei); (3) a locução [verbo haver + infinitivo]: hei de sair, tu hás de entender.
Estudos atualizados mostram que as hipóteses (2) e (3) são, no fundo, no fundo, a mesmíssima coisa. [...] Exemplifico: pega "eu hei de comprar, tu hás de comprar, ele há de comprar" e inverte a ordem dos verbos: "comprar hei, comprar hás, comprar há"; uma pequena adaptação ortográfica e terás "comprarEI, comprarÁS, comprarÁ".[...]
O que está acontecendo no Português moderno, ao que parece, é uma troca de auxiliar: em vez de usar o auxiliar haver, como nas hipóteses (2) e (3) acima, estamos utilizando cada vez mais o auxiliar ir. Isto é: quando queremos expressar a idéia de futuro, ou empregamos o presente do indicativo (menos usado) ou empregamos a locução [vou + infinitivo]. Como todo e qualquer verbo pode, em tese, ocupar a casa da direita, vão formar-se locuções do tipo vou vir, vou ir. Erradas elas não são; podem soar ainda um pouco estranho para muitos ouvidos, mas muitos outros já se acostumaram a elas, inclusive escritores e compositores de renome. Só para adoçar toda essa explicação, dou um exemplo saudoso, de um escritor de respeito: Vinícius de Moraes, na música "Você e Eu", feita em parceria com Carlos Lyra, usou, muito simplesmente (e em dose dupla):
"Podem preparar
Milhões de festas ao luar
Que eu não vou ir, não quero ir".
3. Consulta
A frase "Pode esperar, eu vou ir, sim!" está correta?
Resposta
"Vou ir" é uma locução verbal cujos verbos são os mesmos (ir + ir). Luiz Antônio Sacconi diz que os verbos "ir" e "vir" podem ser auxiliares de si próprios, desde que haja uma justificativa. Se a frase fosse "Pode esperar, eu já vou indo, sim!" a locução verbal acrescentaria um aspecto verbal novo ao seu sentido. O emissor da frase já está a caminho quando responde à pergunta. Já a frase do leitor me parece um pleonasmo vicioso, pois a locução verbal nada acrescenta ao sentido da frase. Seria melhor construí-la assim: "Pode esperar, eu vou (ou irei), sim!". "Vou ir" parece mais uma fuga do uso do futuro do presente do indicativo, tão pouco falado na língua coloquial.
A partir das respostas dos acadêmicos, pode-se inferir que não há unanimidade quanto ao uso de “vou ir”. Como o artigo ficou extenso, por causa das perguntas e das respostas extratadas dos sites, concluo estabelecendo algumas indagações finais:
Vocês usam ou rejeitam tal construção?
Alguma vez foram corrigidos ao enunciá-la?
Quais os argumentos dados?
Em nossa LM é lícita tal perífrase normativamente falando?
A construção “vou ir”, considera-se um pleonasmo ou o segundo elemento incide semanticamente no primeiro?
Em que situações comunicativas o brasileiro costuma usar tal recurso?
Usa-se em todas as regiões do Brasil?
Finalmente, abro um novo debate em torno da locução verbal “vou ir” para que possamos dialogar sobre este fenômeno lingüístico na seção de CL.
Forte abraço para todos! Espero comentários.
Revisão: O. Regueira.
Colaboração: G.E. Puglia.
____**____**____
Nota da blogger: como a postagem acima foi feita pelo autor em novembro de 2008, os links informados como fonte já estão desatualizados, infelizmente.